Abdias do Nascimento (1914–2011) é um dos nomes mais emblemáticos da história contemporânea brasileira quando se trata da luta por igualdade racial, da valorização da cultura afro-brasileira e da articulação entre arte e política. Intelectual multifacetado, ele foi artista plástico, dramaturgo, poeta, escritor, ator, professor universitário, ativista e político. Sua vida e obra foram norteadas por um princípio inegociável: combater o racismo estrutural brasileiro e afirmar a dignidade e os direitos do povo negro.
Um percurso marcado pela militância e pela criação
Nascido em Franca, interior de São Paulo, nosso patrono foi um autodidata que construiu uma carreira impressionante nas mais diversas frentes culturais e sociais. Ainda jovem, participou da Frente Negra Brasileira, organização que, nos anos 1930, já denunciava a exclusão da população negra no país. Em 1944, fundou o Teatro Experimental do Negro (TEN), que se tornou um marco na história das artes brasileiras ao dar protagonismo a atores negros e criar um espaço de valorização estética e intelectual da negritude.
Teatro Experimental do Negro, com Abdias do Nascimento e Léa Garcia, 1957. (Domínio Público)
Essa atuação cultural se expandiu para o campo político. Foi eleito deputado federal em 1983 e mais tarde senador, sempre com um programa voltado para o combate ao racismo, a defesa das ações afirmativas e a promoção dos direitos civis. Ele foi um dos primeiros a propor cotas raciais nas universidades e a defender leis de reparação histórica para a população afrodescendente.
Legado intelectual e institucional
O trabalho de Abdias não se limitou à arte ou à política institucional. Ele também foi o criador do Museu de Arte Negra (MAN) e fundador do Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (Ipeafro), instituições voltadas à preservação, estudo e difusão da cultura negra. Sua produção literária inclui títulos fundamentais como O Negro no Brasil, Racismo e Antirracismo no Brasil e Sortilégio, obra teatral que discutia identidade, espiritualidade e resistência.
Seu acervo — composto por cerca de 3.500 livros, 600 obras artísticas e mais de 20 mil imagens — está hoje sob os cuidados do Ipeafro. Em 2024, a websérie “Andorinha”, lançada no canal da instituição no YouTube, documenta o processo de preservação desse acervo, sublinhando a importância coletiva da memória e da resistência cultural. O nome da série evoca a força do coletivo, assim como a atuação de Abdias ao longo de sua vida.
Reconhecimento e homenagens
O impacto da trajetória de Abdias do Nascimento transcende sua atuação em vida. O acervo que leva seu nome foi inscrito no Programa Memória do Mundo da UNESCO, atestando sua relevância internacional. No Brasil, seu legado é reconhecido por iniciativas como o Selo da Diversidade Abdias do Nascimento, criado pela Prefeitura do Rio de Janeiro para premiar empresas, instituições e órgãos públicos que se destacam na promoção da diversidade étnica, de gênero, etária e religiosa.
A pintura Okê Oxóssi, doada ao MASP pelo Ipeafro em 2018, é um exemplo da síntese poderosa entre arte e ativismo proposta por Abdias: nela, a bandeira do Brasil é reinventada com a saudação ao orixá Oxóssi, propondo um novo pacto simbólico para o país — um Brasil onde as culturas negras estejam no centro da construção nacional.
Abdias Nascimento, Okê Oxóssi (1970). Acrílica sobre tela.
Abdias vive
A vida de Abdias do Nascimento é, em si, uma obra de arte e de luta. Ele não apenas abriu caminhos para artistas, intelectuais e políticos negros no Brasil, mas também construiu ferramentas para que essa luta continuasse depois dele. Ao integrar pensamento crítico, criação estética e ação política, Abdias tornou-se símbolo de resistência e inspiração para as gerações futuras.
Seu legado segue vivo em cada escola que adota políticas de inclusão, em cada teatro que abre espaço para narrativas negras, em cada museu que reconhece a contribuição afro-brasileira para a cultura nacional, e em cada jovem negro que encontra, na história de Abdias, um espelho possível.
“Enquanto houver racismo, não haverá democracia.” — Abdias do Nascimento.